E se o mundo pudesse ser um lugar seguro para as mulheres?

A experiência de caminhar em território autônomo zapatista

Nadia Recioli
7 min readJan 11, 2024

Estar no II Encuentro Internacional de Mujeres que Luchan foi como a abrir uma janela e enxergar afinal, possível, presente e real, o mundo em que sempre acreditei. Sem nenhum fetiche nessa afirmação. Porque se trata mesmo e exatamente de como a vida deveria ser: simples e suficiente. Lembrando que “simples” é a superação desse nosso mal hábito de complicar inutilmente as coisas e que “suficiente” é a ausência de falta.

Um mundo onde cabem muitos mundos.

Vejo as pessoas e elas parecem bem. Seus rostos, seus traços e também esse lugar, esse terreiro aberto e o sol brilhante no céu sem nuvens, o cheiro da fumaça da lenha queimando, tudo isso me lembra outras gentes a quem conheci em outros tantos lugares. Gente que não estava bem. Gente que vem sendo assassinada e explorada e alcoolizada e violentada e saqueada todos os dias pelo mesmo Estado neoliberal que, aqui, não está presente. E é diferente o cheiro do ar e o ritmo do tempo e a leveza do corpo quando o Estado não está presente.

Marielle sim, presente: ao chegar quase o primeiro que vejo é seu nome em uma faixa que nos lembra de perguntar quem a mandou matar. Um povo com memória é um povo rebelde, sem dúvida.

Caminho sem pressa pelo acampamento. Nos autofalantes as vozes seguem no exercício político de dizer e ouvir. A isso viemos. Ao redor, as montanhas recobertas de pinheirais. E essa tranquilidade no corpo que minha pele até então desconhecia por completo. Sorrio a cada uma das pessoas que encontro e recebo de volta outro sorriso. Meu sorriso aqui não é interpretado com malícia, como um tipo de convite, como seria em outras partes. Um sorriso é apenas um sorriso. E todas essas pessoas com seus corpos são exatamente isso, pessoas com seus corpos, livres. E como são belas todas elas! Vindas de todas partes do mundo, seus rostos me parecem familiares, todos. Nos reconhecemos mutuamente em nossa humanidade e nos saudamos.

As crianças, mesmo as mais pequenas, correm à vontade por aí. E não importa quão longe possam ir, encontram pessoas que lhes apoiam e que quando necessário lhes ajudam a encontrar suas mães. Os objetos perdidos, mesmo os mais caros, são anunciados nos autofalantes para que sejam devolvidos. Realizar uma atividade simples como cozinhar ou carregar um galão de água, é apenas isso. Ninguém supõe que a primeira seja uma obrigação inerente ou que alguém não seja capaz de realizar a segunda. E então a gente cozinha e carrega as coisas e faz o que precisa ser feito e, sem nos determos em tantos detalhes, o tempo como que se expande. O corpo também.

Não demora muito para tomar certas decisões simples. Alguém sugere, outro alguém complementa, e já está. Há confiança. Uma confiança impressionante, de se tomar o microfone e relatar diante de mais de 3000 pessoas desconhecidas suas dores mais profundas. Os abusos perpetrados por pais e tios e irmãos e maridos e patrões que por vergonha e medo se guardou em segredo por toda uma vida. Porque aqui há uma certeza que se será escutada e acolhida e abraçada depois. Ninguém irá duvidar.

Há uma confiança de dizer o que se pensa e seguramente equivocar-se em algum momento, cedo ou tarde. Estamos aprendendo, e sabemos disso.

A ironia é que este que foi o ambiente mais seguro que experimentei em toda minha vida, existe e foi convocado justamente pelo fato de que sofremos violência, todas nós, do mundo todo, de todas as raças, de todas as classes, de todas as idades, de todas as religiões, todas as horas de todos os dias. Nos irmanamos no triste fato de que somos sistematicamente violentadas e assassinadas. E choramos juntas e sorrimos umas para as outras.

Seria importante compreender que faz parte do significado da palavra autonomia a possibilidade de sentir-se segura: saber que não vai faltar nada a você e que portanto você também não precisa tirar nada de ninguém. Nem mesmo uma “vantagem” precisamos tirar, se temos a certeza do apoio e a garantia do suficiente de tudo o que seja essencial a uma vida digna. E o suficiente é relativamente muito pouco. E depois do suficiente tudo o que vem é abundância. E abundância é coisa fácil de partilhar. A gente precisa sentir isso na pele para saber o que é. Não se trata de compreender intelectualmente.

Há bem poucos lugares no mundo onde podemos estar contentes e seguras.

As palavras pronunciadas pela comandanta Amada reverberam profundamente em mim. Eu que não costumo sentir muito medo. Eu que tenho caminhado sem me preocupar pelas madrugadas de todo tipo de cidades e vilarejos. Eu que tenho sorte. Soube agora, e apenas agora, que jamais havia me sentido segura de verdade como me senti aqui. Que meu corpo andava por aí contraído e tenso e esse era o meu “normal”. E que jamais eu havia estado assim contente. Contente no sentido de sentir-me íntegra, completa. De conter em mim exatamente tudo o que eu preciso. E talvez um pouco mais.

Há duas ausências fundamentais na equação que permitem esse resultado: aqui não chegaram os homens nem o Estado. Não foram convidados, não puderam entrar.

Não fizeram falta.

E isso faz pensar…

A ausência do Estado neoliberal é a tônica deste território e faz as coisas pulsarem diferente. Permite que exista organização em vez de controle, confiança em vez de medo, apoio mútuo em vez de exploração. E faz pensar nessas mulheres jovens, que organizam tão impecavelmente esse encontro e nos proporcionam assim o “tempo para pensar” e o “espaço de escuta” que nos falta lá fora.“Herdeiras da resistência”, essas mulheres que nasceram e cresceram aqui nesse ambiente em que viver é sinônimo de organização, dignidade e autonomia. Mulheres para quem o mundo com que sempre sonhei e por vezes acreditei utópico é a realidade no sentido mais cotidiano da palavra. Mulheres para quem o meu mundo lá fora é que parece estranho: “me chama atenção que todas estão sozinhas e precisam vir até aqui para encontrar quem as escute”. Profundamente conscientes de sua história como são, que absoluta potência têm nas mãos essas mulheres!

A outra ausência fundamental, a ausência dos homens, é uma pausa no discurso dominante. Uma oportunidade de experimentar e imaginar como poderia ser o mundo organizado por mulheres, com uma tônica dada por mulheres. Me parece um exercício fundamental. Que possamos, desde nossas próprias geografias e calendários, criar mais espaços e tempos como esse. Para que mais e mais pessoas e cada vez mais frequentemente possamos experimentar no corpo a certeza de que um mundo seguro e justo para toda a gente é possível e é real.

Ao final do encontro nos comprometemos a honrar os acordos que nos propõem as companheiras zapatistas:

QUE TODAS FAÇAMOS E CONHEÇAMOS AS PROPOSTAS À MEDIDA QUE CHEGAM EM NOSSO PENSAMENTO SOBRE O TEMA DA VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES. OU SEJA, PROPOSTAS DE COMO FAZER PARA PARAR ESTE GRAVE PROBLEMA QUE TEMOS COMO MULHERES SOMOS.

QUE SE QUALQUER MULHER, EM QUALQUER PARTE DO MUNDO, DE QUALQUER IDADE, DE QUALQUER COR, SOLICITA AJUDA PORQUE É ATACADA COM VIOLÊNCIA, RESPONDEREMOS AO SEU CHAMADO E BUSCAREMOS FORMA DE APOIÁ-LA, DE PROTEGÊ-LA E DE DEFENDÊ-LA.

QUE TODOS OS GRUPOS, COLETIVOS E ORGANIZAÇÕES DE MULHERES QUE QUEREM COORDENAR PARA AÇÕES CONJUNTAS TROCAREMOS FORMAS DE SE COMUNICAR ENTRE NÓS, SEJA POR TELEFONE OU INTERNET OU COMO FOR.

SABEMOS QUE NÃO IMPORTA O DIA, SEMANA, MÊS OU ANO, EM QUALQUER LUGAR DO MUNDO HAVERÁ UMA MULHER QUE TEM MEDO, QUE É AGREDIDA, QUE ESTÁ DESAPARECIDA OU FOI ASSASSINADA.

JÁ DISSEMOS QUE NÃO TEM DESCANSO PARA AS MULHERES QUE LUTAM.

ENTÃO QUEREMOS PROPOR AQUI, E ATRAVÉS DE QUEM NOS ESCUTA, OU LÊ OU NOS VÊ, UMA PROPOSTA DE AÇÃO CONJUNTA. PODE SER EM QUALQUER DIA DO ANO, PORQUE JÁ SABEMOS COMO É O SISTEMA PATRIARCAL QUE NÃO DESCANSA PARA NOS VIOLENTAR. MAS NÓS PROPOMOS QUE ESTA AÇÃO CONJUNTA DE MULHERES LUTANDO EM TODO O MUNDO SEJA A PRÓXIMA 8 DE MARÇO DE 2020.

PROPOMOS QUE ESTE DIA CADA ORGANIZAÇÃO, GRUPO OU COLETIVO FAÇA O QUE ACHA QUE É MELHOR.

E QUE CADA UM CARREGUE A COR OU SINAL QUE NOS IDENTIFIQUE, SEGUNDO O PENSAMENTO E MODO DE CADA UMA.

MAS QUE TODAS LEVEMOS UM LAÇO PRETO EM SINAL DE DOR E PESAR PARA TODAS AS MULHERES DESAPARECIDAS E ASSASSINADAS EM TODO O MUNDO.

Desde o Semillero “Huellas del Caminar de la Comandanta Ramona”, Caracol Torbellino de Nuestra Palabra, Montanhas Zapatistas em resistência e rebeldia.

Segundo Encuentro Internacional de Mujeres que Luchan

Dezembro de 2019

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Nadia Recioli

Parteira, doula, permacultora, artista, educadora. Não sei caber e quero interlocução.